Querida recém-descoberta grávida, eu sei que você não se reconhece mais.
Apenas algumas semanas passadas da confirmação, você sente. São as cólicas que vêm e vão, é o peito doendo, inchando, não cabendo mais nas roupas. São os quadris se redimensionando, abrindo espaço por dentro para acomodar quem chegou, está chegando, se formando. É a indisposição dos primeiros meses. É a sensação de ter sido enganada, cadê o famoso brilho da gravidez?
Calma. Ele já vem. E depois vai, depois volta. É assim.
De quem é este corpo? Não é mais seu. É seu e de seu bebê. Estado liminar. Como estar presa dentro da soleira da porta, sem passar para o lado de dentro e sem poder voltar para o lado de fora; é assim a gravidez, um não ser si mesma sem ser o outro, um estar que se dilata no tempo enquanto o espaço estica, acolhe, preserva. Uma entre fase, um interlúdio. Aprendizagem da espera.
Dizem que as grávidas têm sonhos estranhos no começo da gravidez. Eu passei por isso. Num desses sonhos, eu tinha que tomar um líquido extraterrestre para poder continuar a viver. Lutei para não ter que bebê-lo, mas não tive escolha. Precisei colocar no meu corpo a substância estrangeira. Aceitar o bebê estrangeiro, aquele corpo estranho no meu corpo familiar, novo corpo mamífero. Eu, controladora e organizada, queria passar pela gravidez sem que ela passasse por mim. Queria gerenciar e acontecer minha gravidez, mas foi ela que me aconteceu, apesar de mim, ainda bem. Demorei a entender que a única coisa que se pode fazer no limiar da porta é se entregar enquanto o próximo passo não for possível.
Estar grávida é um segredo com prazo de validade. Outros podem ser guardados, deixando a aparência intacta; mas a barriga crescendo não é um detalhe, é um grito de bicho no meio da noite. E eu aceitei esse grito no corpo, aceitei meu corpo se expandindo, tomando mais espaço, falando por mim tudo aquilo que eu calava. Inventei minha esquizofrenia circunstancial: responsabilizar o bebê pelo mau humor, pelas lágrimas, pela sensibilidade. Depois entendi que precisava de espaço para gestar em paz. Recolhimento. Dormir cedo. Curtir o corpo. O corpo intensificado: mais sabor, mais amor, mais sono, mais fome, mais sede. Mais um. Mais um corpo dentro do corpo. Dois estando em um.
E foi então que chegou o brilho da gravidez.
No funcionamento perfeito e inesperado de dois corações no mesmo espaço, eu era a mulher hiperbólica, lunar, que tinha mais sangue dentro de mim, mais vida por que lutar, o corpo mais forte para abrir caminhos. Mais perto da água e mais longe do asfalto, os pés pisando firmes na terra, deixei minha filha se enraizar em mim, até que ela estivesse pronta. Pronta para vir ser uma a meu lado, saindo do meu corpo para me dar as mãos.
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